- Posso tirar uma foto da sua família, senhora? - perguntei, erguendo a câmera presa em meu pescoço para que ela pudesse vê-la.
A mulher me olhou desconfiada e eu vi seus olhos iniciarem um processo de análise. Ela tinha cerca de trinta segundos para avaliar que eu não era uma fotógrafa psicopata que queria tirar uma foto de seus filhos para depois sequestrá-los, antes que eu visualizasse outra boa imagem para a minha lente capturar e virasse as costas.
O garotinho menor escondeu-se atrás da perna esquerda da mãe, deixando metade do rosto e um dos olhos exibidos, curioso. Sua cabeça mal alcançava a articulação do joelho da mulher. Observei o medo nos seus olhos, ao mesmo tempo em que o castanho de sua íris brilhava excessivamente, como se uma lanterna estivesse direcionada para suas pupilas, que pareciam quase dilatadas – talvez por causa do medo.
Do outro lado da mãe, um garoto que devia ter cerca de sete anos, me encarava descaradamente. Sua pele escura reluzia com a luz do sol e seus cílios quase pareciam loiros. Ele apertava a mão da mulher com força. Seu cabelo era quase inexistente. Ele cutucou a garota ao seu lado com o indicador, sem tirar os olhos de mim.
A garota devia ter cerca de dez anos e, assim como seus dois irmãos e a mãe, vestia trajes velhos, manchados e rasgados em alguns pontos de contado, principalmente joelhos, cotovelos e ombros. Seus cabelos negros estavam presos em duas tranças que lhe escorriam pelo os ombros e chegavam à altura da cintura. Sua expressão era de cansaço extenso e, de quando em quando, ela mordiscava o pão endurecido que apertava com as duas mãos. Ela era a única que pareci desinteressada em relação à minha presença e meu pedido, apesar de que seu olhar estava fixo no grande aparelho em minhas mãos. Senti certa afinidade pela garotinha. Talvez porque ela me lembrasse eu mesma na sua idade: com as tranças, as roupas velhas e rasgadas e a indiferença quanto ao que acontecia ao redor. Exceto que as minhas roupas eram escolha minha. Não, eu sabia que era por causa do fascínio por câmeras. Além do mais, a minha família vivia em Moema, enquanto ela morava na periferia de São Paulo, provavelmente.
De fato, as palavras podem ser lidas como se eu desprezasse algum morador da periferia, mas não é disso que se trata. Não se trata de preconceito: e, sim, da triste realidade do nosso país e do mundo.
Mas não é sobre isso. Não é sobre a maneira parcialmente racista, porém às vezes sensata, com que as pessoas vêem uns aos outros. Nunca fui do tipo que estereotipa, e não seria naquele dia que eu mudaria isso.
A mulher relevou que estava com pressa, mas demonstrou-se simpática posando para a foto. O lago atrás refletia a luz do sol tão furiosamente que quase impossibilitava que algum passante avistasse os patos nadando alegremente no centro da oval.
O garotinho foi levantado – arrancaram-lhe os pés do chão -, apesar de seus protestos, e ele sentou-se na tora mais alta que compunha a cerca de madeira. Sempre me perguntei se aquela cerca tinha a função de proteger os animais e o lago da nossa sujeira e agressividade, ou se nos protegia de sermos surpreendidos por um pato faminto, em plena manhã, quando saímos para uma corrida no parque da esquina.
A garota esboçou um sorriso e envolveu o pescoço do irmão do meio com seu braço fino, encostando e apoiando a irmandade de cabeças. A mãe puxou as duas crianças para sua frente, segurando o filho para que não caísse de cima da cerca.
Levou apenas milésimos para que eu encontrasse o ângulo adequado à luz e à posição da família e menos milésimos para que meu obturador fechasse e tornasse a abrir para que finalmente a imagem aparecesse, assim como eu visualizara-a em minha mente, no visor digital.
Eu encarei a foto e fiz a minha habitual análise, avaliando a foto. Não como um inteiro, mas analisando cada pequena parte que a compunha, para ter certeza de que era boa o bastante ou se eu deveria tentar outra vez, talvez mudando o ângulo. A luz me pareceu ótima e o plano de fundo estava surpreendentemente destacado e fantástico. Mas eu sabia que algo estava faltando: as expressões das crianças pareciam exageradas e nervosas, como uma foto que tiram de você abraçada com sua bisavó velha e esquelética que você nunca tinha visto em toda a sua vida.
Meu instinto estava trabalhando loucamente e eu não sabia dizer se valia à pena tirar outra foto. Tirei minha atenção da câmera e encontrei quatro pares de olhos fixos em meu rosto, cobertos de expectativa. Sorri abertamente e caminhei na direção das crianças e da mulher. O sol do meio dia tocou o topo da minha cabeça assim que dei um passo para fora da sombra em que eu estivera. O calor acariciou-me com fervor e eu senti a necessidade de arrancar as calças e o agasalho que eu vestia. Talvez pular a cerca e mergulhar no lago. Se eu fosse louca o bastante.
Limitei-me a erguer o visor em frente aos quatro rostos, para que pudessem enxergar a foto. As reações foram boas e alegres e eu sabia que bastava: eles eram a foto. Se a imagem os satisfazia, era boa o bastante para mim. Mais tarde, eu ampliá-la-ia e pendurá-la-ia na sala de estar da minha própria casa, como se fosse a minha família.
De cócoras no chão, ainda observando as crianças olharem admiradas para o visor e para a minha câmera, me ocorreu que fotos capturam partes de nossas vidas, mas nunca paramos um segundo para nos importar em capturar partes das vidas alheias, porque não nos vale de nada se lembrar de coisas das quais não fizemos parte, por mais divertidas e incríveis que possam ter sido. Fotos são lembranças nossas. De mais ninguém. É claro que existem muitas pessoas que vão em exposições, mas elas não vão para analisar os personagens da foto ou a situação, e sim a qualidade da foto e a habilidade do fotógrafo.
A garota olhou para mim com um sorriso que me valeu o dia inteiro e depois mastigou o último pedaço do seu pão, esfregando uma mão na outra para se livrar dos farelos. Tirei do meu bolso de trás uma barra de cereais e entreguei ao garotinho, já de volta ao chão. Ele sorriu, exibindo os dentes pequeninos e afiados.
Naquele momento, decidi fazer algo que acabou se perdendo da minha mente momentos depois de agradecer a família e voltar a andar pelo parque à procura de boas imagens.
Uma semana inteira se passou, sem que eu sequer pensasse sobre aquele domingo e aquela foto. Minha câmera tinha ficado adormecida, já que eu estava trabalhando na edição das imagens que eu havia tirado do casamento de uma prima, preparando um presente para ela.
No domingo seguinte, eu levantei e saí para correr, mas não no mesmo parque do final de semana anterior. Depois de quatro voltas no circuito, sentei-me em uma sombra, no pé de uma árvore para me refrescar. Tirei a minha costumeira barra de cereais do bolso de trás e abri a embalagem. Lembrei-me rapidamente do garotinho negro sorrindo pra mim, vestido nos trajes sujos e velhos naquele domingo que parecia que havia se passado há meses atrás.
Virando o rosto pude ver uma criança brincando com o pai, próximos ao banheiro. A mãe tirou uma câmera fotográfica da bolsa e tirou uma foto da garotinha fazendo uma careta e do pai levantando-a no ar.
Engoli rapidamente a barrinha de cereais e fui direto para casa com uma ideia em mente. Eu não fazia ideia se havia algum shopping por perto que tivesse uma loja Kodak ou qualquer outra que ampliasse fotos, mas peguei a bolsa da minha câmera e fui ao shopping mais próximo. Perguntei ao primeiro segurança que encontrei e ele me informou que, de fato, não tinha nenhum lugar ali que pudesse ampliar uma foto para mim.
Xinguei em minha mente por ser um domingo e não um dia útil. Dirigi para o próximo shopping. Para a minha sorte, havia uma pequena loja que ampliava fotos. A qualidade não era muito boa e as fotos em papel pareciam-me brilhantes demais, mas eu não hesitei em pedir ao funcionário que ampliasse a foto para mim imediatamente. Ele concordou depois de muita insistência e disse-me que voltasse dali a quinze minutos.
Dei uma volta pelo shopping, na esperança de talvez encontrar alguma loja interessante. Talvez um vestido para a festa que eu teria naquela semana. Não encontrei nada e voltei à loja um pouco mal-humorada e com os pés doendo. Uma coisa é correr no parque, com o ar livre e o ambiente apropriado, outra é ficar andando que nem uma tonta pelo shopping, sem saber pelo que exatamente eu estava procurando.
O homem cobrou um preço justo, levando em conta que eu pedira de imediato, e me entregou a foto ampliada dentro de um envelope. Peguei minha câmera, agradeci o funcionário e parti sem olhar para trás.
O meu carro pareceu lento por conta da minha pressa. Já eram onze e meia. O trânsito deixou-me irritada e eu estava prestes a arrancar os cabelos se não fosse a minha necessidade de fazer aquilo rapida e urgentemente – eu não tinha tempo para ficar arrancando montes de cada vez. Estacionei próxima ao portão principal e corri com o envelope nas mãos. Haviam me sobrado cinco minutos.
Corri parque adentro até chegar ao pequeno Centro Cultural. Estávamos no primeiro final de semana do mês, que era exatamente quando abriam as portas para alguma exposição que duraria pelo resto do mês. Eles tinham somente os primeiros cinco dias úteis da semana para prepará-la, e haviam me convidado para expor nesse mês. Eu recusara, explicando que eu estava envolvida com outro projeto – álbum de casamento da prima. Mas agora eu talvez ainda tivesse uma chance.
Entrei pelos fundos e busquei com olhos a funcionária que havia conversado comigo quase um mês atrás. A sala estava praticamente cheia. Várias pessoas estavam de pé ao redor do balcão da secretária do Centro (por que a secretária ficava nos fundos?), conversando em um volume um tanto alto. Encontrei a minha mulher no canto da sala, conversando com um senhor que não estava nem ouvindo o que ela estava falando (eu soube dizer pela expressão indiferente dele e o aparelho de surdez colado na orelha).
- Oi, eu sei que estou um pouco atrasada. – ofeguei, puxando-a pelo braço. Eu sei que fui mal-educada, mas eu estava com pressa. – Tenho uma foto para expor, se não se importa.
A mulher reconheceu-me e, surpreendentemente, sorriu para mim, cumprimentando-me e apresentando-me para o senhor com quem conversava, que era casado com a responsável pelo estabelecimento (palavras dela). Pedi desculpas a ele pela intromissão e ele não respondeu e nem ao menos assentiu com a cabeça (provando minha teoria de que ele não estava escutando absolutamente nada). Assim como uma múmia, vendo a oportunidade de escapar das garras da mulher que insistia em conversar com ele, caminhou na direção oposta.
Pedi à funcionária que pendurasse a minha foto onde quisesse, desde que eu pudesse escrever à mão algumas palavras embaixo. Mostrei-lhe a foto e ela pareceu um pouco hesitante. Bom, primeiramente a ampliação estava pior do que eu imaginara (eu não havia conferido), além do que, não era uma foto tão boa. Eu sabia que não era uma foto incrível. Mas ela tinha um significado.
A mulher fez uma careta e chamou um estagiário para pendurar minha foto na exposição antes que eles abrissem. Entregou-me um papel e uma caneta para que eu fizesse a legenda. Escrevi em letras grandes algo que eu sabia que só fazia sentido para mim: Minha Foto Egoísta.
A lembrança era minha.
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